terça-feira, 29 de setembro de 2009

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sorriso Audível das Folhas


Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Saudosa Maloca


João Gilberto
Composição: Adoniran Barbosa

Se o senhor não "tá" lembrado

Dá licença de "contá"
Que aqui onde agora est
áEste edifício "arto"Era uma casa "véia"
Um palacete assobradado
Foi aquí, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca"Construímo" nossa maloca

Mas, um dia, "nóis" nem pode se "alembrá"
Veio os "home" co'as "ferramenta"
O dono "mandô derrubá"
"Peguemo" todas nossas coisa'

E "fomo" pro meio da rua"Apreciá" a demolição
Que tristeza que "nóis sentia"

Cada "táuba" que caía
Doía no coração
Mato Grosso quis "gritá"
Mas em cima eu falei
Os "home" tá co'a razão"Nóis arranja" outro "lugá"
Só se "conformemo"Quando o Joca falou
"Deus dá o frio conforme o 'cobertô'"
E hoje "nóis pega as páia"
Na grama do jardim
E pra "isquecê" "nóis"
"cantemo" assim
Saudosa maloca, maloca querida

Dim dim donde "nóis" "passemo" os'dias feliz de "nossas vida"
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde "nóis" "passemo" os'dias feliz de "nossas vida"

quarta-feira, 22 de julho de 2009


A Borboleta Azul


No alegre sol de então

De uma manhã de amor,

A borboleta solta no fulgor

Da luz, lembrava um leve coração.

Ia e vinha e a voar

Gentil e trêfega, azul,

Sonoramente a percorrer pelo ar,

Como um silfo tenuíssimo e taful.


Sobre os frescos rosaisPousava débil, sutil,

Doirando tudo de um risonho abril

Feito de beijos e de madrigais.


Que doce embriaguez

O vôo assim seguir

Da borboleta azul

,correndo, a vir

Do espaço pela Etérea candidez!


Fazendo, tal e qual,

O mesmo giro assim,

O mesmo vôo límpido, sem fim,

Nos mundos virgens de qualquer ideal.


Ir como ela tambémEm busca das loucas

E tropicais e fulgidas manhãs

Cheias de colibris e sol, além...


Ir com ela na luz

De mundos através,

Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,

Ó alma, minha, que alegria a flux!...


No alegre sol de então

De uma manhã de amor

A borboleta solta no fulgor

Da luz, lembrava um leve coração.
(Cruz e Sousa)
















sexta-feira, 10 de julho de 2009

Via Láctea






"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo


Perdeste o senso"! E eu vos direi, no entanto,


Que, para ouvi-las, muita vez desperto


E abro as janelas, pálido de espanto...




E conversamos toda a noite, enquanto


A via láctea, como um pálio aberto,


Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,


Inda as procuro pelo céu deserto.




Direis agora! "Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido


Tem o que dizem, quando estão contigo?


"E eu vos direi: "Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido


Capaz de ouvir e de entender estrelas".






Olavo Bilac

terça-feira, 16 de junho de 2009

Esmola de Dulce

A Alfredo A.

E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada,
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada
:- Senhora, dai-me u’a esmola - e estertorada
A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.
Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.

Augusto dos Anjos

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Cora Coralina


Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro.

E foi que veio aquela da roça

tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe,

tinha queimado seu rancho,e tudo que tinha dentro.

Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar

novo rancho e comprar suas pobrezinhas.




O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,

entregou sem palavra.

A mulher ouviu.

Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,

se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar

E não abriu a bolsa.

Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar

e a mulher participa sem ajudar.




Da mesma forma aquela sentença:

"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar".

Pensando bem, não só a vara de pescar,

também a linhada,o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso

e ensinar a paciência do pescador.

Você faria isso, Leitor?

Antes que tudo isso se fizesse

o desvalido não morreria de fome?



Conclusão:Na prática, a teoria é outra.


(Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas), 20/08/1889

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Negro

Traços
vincos
marcas
Na face há dor


Jeito
ginga
capoeira
seu corpo lutou


Liberdade
Contra a maldade do algoz


Me espanto
o canto
a saudade na voz


Os passos
o espaço
entre a cerca e o engenho

Não corre tu
morres
Zumbi


Pro tronco
não volto
a morte é melhor


Na mira não
corre tu morres
Zumbi


Abismo
vivo?
morto?
chão
saudades
ZUMBI

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Fernandinho(pros íntimos)

Fernando Pessoa

Sorriso audível das folhas

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.


Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.








Mas o olhar, de estar olhando Onde não olha, voltou E estamos os dois falando O que se não conversou Isto acaba ou começou?

sábado, 7 de março de 2009

Amar Teus Olhos

Podia com teus olhos
escrever a palavra mar.
Podia com teus olhos
escrever a palavra amar
não fossem amor já teus olhos.

Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos escrever
o verbo semear e ser tua pele
a terra de nascer poema.

Podia com teus olhos escrever
a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.

Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.


Carlos Melo Santos,
in "Lavra de Amor"

terça-feira, 13 de janeiro de 2009



Epitáfio


“Jaz aqui tai”
Que nada!Jaz, jaz...
Só jaz que já morreu.
Eu não. Estou aqui
“vivinha da Silva”
Bem do seu lado
Não se assuste.

Consegue me ouvir?
Falando sobre escola,
Filmes, textos, família
Reclamando até
Abraçando-te pela manhã
Bom dia eu digo

Ah já está lembrando.
De nossas conversas
Troca de experiências felicidade,
Busca por aventuras, tanta vaidade.

Era uma vida tão alegre
Momentos de pura distração
Erros, aprendizagem, ilusão.

Esquecer de mim? Jamais.
Quanto mais comigo aqui
Cutucando-te a memória
Lembrando-te da minha história
que jamais esquecerás;